Antonio Barcena Luis
Professor e tradutor, graduado em língua e literatura russa, colaborador da Prensa Latina
Numerosos e marcantes marcos marcaram decisiva e indelevelmente a amizade entre os povos de Cuba e da Rússia ao longo dos anos. O nascimento da Rusística em Cuba no alvorecer de 1962, evento histórico convocado pelo líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, e a primeira turma de Rusistas em 1964, constituem, sem dúvida, uma extraordinária cultura e amizade que sempre merecem ser lembrados.
A memória de um marco tão significativo deve ser preservada além da existência de seus protagonistas cubanos e soviéticos – ainda que felizmente há mais presenças do que ausências – para ser inserida nos anais dos laços carinhosos e indissolúveis que unem nossos povos. Diz-se com razão que a memória é a expressão suprema da nobreza humana.
Por “russo” em seu sentido mais específico costuma-se entender a ciência linguística que se dedica ao estudo do estado atual da língua russa.
Há quem chame essa área do conhecimento de “filologia russa”. Num sentido mais abrangente e contemporâneo, “Russo” engloba um conjunto de ciências que abordam, cada uma à sua maneira, a língua enquanto tal, a metodologia do seu ensino, a comunicação, a etiqueta verbal, a literatura, o povo com os seus traços distintivos e costumes, história, incluindo folclore, cultura artística e material em sua mais ampla diversidade.
Como resultado, esta segunda concepção é caracterizada por uma abordagem muito abrangente da riqueza e amplitude do modelo civilizacional russo. Há quem chame esta vasta área do conhecimento no mundo falante de espanhol “Estudos Russos”, o anglófono prefere “Estudos Russos”. Em nosso ambiente insular o termo em voga é “russo”.
O ensino de rudimentos básicos da língua russa em Cuba, segundo fontes verificáveis, começou, de forma limitada, na primeira metade do século XX. Costuma-se dizer que entre 1928-1936 Ekaterina Blagoobrazova, mãe de Alejo Carpentier, ensinou russo na capital.
Em outubro de 1942 Cuba aderiu à Coalizão Anti-Hitler, estabeleceu relações diplomáticas com a URSS e no Instituto Cultural anexo à embaixada soviética, a língua de Alexander Pushkin foi ensinada até o golpe de Estado de Batista em 1952 quando em 2 de abril causou a ruptura das relações.
Com o triunfo da Revolução, os laços foram restabelecidos e aprofundados, e o aprendizado da língua russa tornou-se mais atual. Em 1960 e 1961 surgiram os primeiros cursos de curta duração em entidades governamentais e nas nascentes escolas de idiomas. A comunicação interlinguística foi então garantida por um pequeno grupo de soviéticos hispânicos e os primeiros tradutores soviéticos.
Assim, na tarde chuvosa de 22 de dezembro de 1961, a então Praça Cívica sediou o ato de culminância da Campanha Nacional de Alfabetização.
Naquele dia impressionante, Fidel apresentou uma proposta massiva de bolsas para jovens alfabetizadores, conhecida como Plano Nacional de Bolsas do Governo Revolucionário, e que, na minha opinião, se tornaria um dos pilares essenciais sobre os quais se basearia e se projetaria • em grande parte o desenvolvimento da cultura nacional nos últimos 50 anos.
A chamada para o estudo lançado pelo líder da Revolução aos jovens incluía duas opções surpreendentemente inovadoras:
“Precisamos de 2.300 graduados da oitava série para entrar como bolsas de estudo… para professores de língua russa… eles receberão ensino que os treinará como professores de língua russa…”
E então acrescentou:
“Precisamos também de 200 graduados do ensino médio para estudar e ser treinado para exercer diversas funções: intérpretes, tradutores, em órgãos do Estado…”
A convocação surpreendente e transcendental de Fidel, nesta área nunca antes aventurada, delineou o inimaginável até então projeto de formação em massa na Ilha para fins profissionais, e a adesão a um rígido desenho curricular, além de simples improvisações, professores e tradutores de língua russa/ intérpretes.
O empreendimento inusitado, segundo alguns uma bela utopia com um colossal fundo de loucura, foi tão revolucionário em sua concepção quanto em sua magnitude.
Significava traçar e desbravar um caminho desconhecido, criando uma grande oficina de experimentação com recursos técnicos especializados muito limitados e quase sem experiência, mesmo por parte de não poucos professores soviéticos, para quem seu trabalho em Cuba se tornou um desafio supremo como pedagogos e falsificadores da metodologia ainda muito incipiente do ensino do russo como língua estrangeira, em particular, em larga escala, e fora do meio linguístico.
Nas primeiras semanas de 1962, a Escola Secundária Básica “Máximo Gorki” para Professores de Língua Russa e o Instituto de Línguas “Pablo Lafargue” começaram a ganhar vida nos bairros elitistas de Flores e Miramar.
Com o entusiasmo inesgotável daquela situação irrepetível, com a certeza de que o país vivia um momento em que o impossível era viável, o treinamento em larga escala de russos foi realizado pela primeira vez no hemisfério. Então, começou do zero o estudo profissional de uma língua e cultura, sem dúvida, mais do que exótica para a época por este lado do Atlântico.
O colossal desafio foi assumido com a absoluta convicção de que era preciso aprender russo, que era uma nova missão imposta pelas circunstâncias. Com urgência, sem reservas ou hesitações, impôs-se a pulverizar o impossível, destruir mitos, saltar qualquer abismo, real ou suposto, por mais intransponível que possa parecer à primeira vista.
A tropa sui generis tinha apenas o segundo ou terceiro ano do Secundário Básico em seu crédito acadêmico, mas sentia uma sede insaciável de aprendizado.
E o mais importante: aqueles que ainda eram brigadistas, o chamado segundo exército da Revolução, carregavam em seus corações adolescentes a experiência piramidal e inestimável da Campanha de Alfabetização que lhes dera uma eterna fonte de energia, ímpeto e tenacidade, um privilégio privado de uma única geração de cubanos.
Dificuldades obeliais podiam ser vistas no horizonte e enigmas insondáveis vislumbrados. Podia-se conjecturar ou prever que não faltariam armadilhas e meandros, mas com absoluta certeza haveria também torrentes de verve, entusiasmo e alegria para desvendá-los e superá-los. Desta forma, o palco e uma parte dos protagonistas coincidiam.
Com a chegada dos professores soviéticos, a ideia inicial começaria, lenta mas inexoravelmente, a se concretizar, uma experiência única – repito – sem precedentes em Cuba, nem paralelo em toda a geografia do chamado Novo Mundo.
Como tantas outras vezes e em circunstâncias díspares, aquela geração começou -no sentido mais estrito da expressão banal- a “fazer o caminho caminhando”.
Enfrentamos então o desafio inédito de estrear no estudo da língua russa. Aprender russo pode se tornar uma batalha engrandecedora, mas sempre interminável, nem por capitulação, nem por armistício. Com o russo é impossível obter uma resposta sobre um assunto sem ser varrido por um fluxo de perguntas novas e perturbadoras sobre outros concomitantes. Sobretudo, se se pretende dominá-lo numa perspectiva filológica, como objeto de estudo e para fins profissionais.
Para sempre, e como se estivesse acontecendo agora, vou me lembrar da minha primeira aula de russo. Da mesma forma, nunca posso esquecer minha primeira professora: Nina Shestakova. Gravei uma imagem daquele primeiro encontro para a eternidade: ela – toda branca, cabelos bem loiros, quase brancos, cabelos curtos, nariz muito russo arrebitado, olhos claros, bochechas vermelhas como uma maçã – fazendo-nos repetir antes a página 9 do Manual de Língua Russa de Nina Potapova:
”Ðúрок 1. ВоÑé дом. ВоÑé моÑüÑé. Дом ÑéуÑé? Да, дом ÑéуÑé. ВоÑé моÑüÑé. МоÑüÑé Ñéам? Да, он Ñéам”*.
Naquela tarde, ao receber a primeira aula, como em uma cerimônia de iniciação, sem ter consciência disso ou perceber que estávamos vivendo um evento de transcendência, nos tornamos atores diretos do nascimento da Rusística em Cuba. (Segue)
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