Sergio Ferrari*, colaborador de Prensa Latina
Pergunta: O dia 1º de março marcou três meses desde a posse do presidente Lula. Para avaliar cada novo governo em qualquer país do mundo, os primeiros 100 dias são sempre mencionados como parâmetro indicativo. Qual é a sua avaliação desses primeiros 100 dias no Brasil?
João Paulo Rodrigues: Nossa avaliação desse primeiro período, iniciado com a posse do presidente Lula, é positiva. É preciso lembrar que o Brasil viveu uma profunda crise a partir de 2015. Foram sete anos muito complexos com repetidos ataques à democracia e em que tiveram grande impacto a recessão económica e a crise social que provocaram um grande aumento do desemprego e o regresso a uma situação de fome de milhões de compatriotas. Nessa época, também havia um processo de destruição do estado de bem-estar, que atingiu particularmente as instituições que operam e executam políticas públicas de benefício e impacto social. Isso não pode ser reorganizado de um dia para o outro. Vai levar tempo. Ou seja, após esses primeiros 100 dias de gestão do novo governo, estamos no início de um caminho que tem objetivos claros: retomar o crescimento econômico, combater a desigualdade social e fazer as reformas estruturais necessárias para restaurar a
resolver os problemas do povo, especialmente dos necessitados.
A oposição sempre agressiva
P: Nas últimas eleições de 30 de outubro, o atual ex-presidente Jair Bolsonaro perdeu por uma estreita margem de menos de dois por cento. Qual é a atitude atual da oposição?
JPR: Lula foi eleito como expressão de uma ampla frente democrática que se construiu para fazer oposição ao governo Bolsonaro. Hoje o presidente está muito firme, com uma posição mais à esquerda, tanto política quanto economicamente. Porém, não se pode ignorar que essa ampla frente é formada por forças políticas e sociais de esquerda, de centro e até de direita, com projetos diversos. Não se pode negar que há uma disputa nessa frente sobre a visão do governo sobre vários temas, como economia, em relação ao preço dos combustíveis, política agrária e fundiária.
A atual oposição ao Governo é, sobretudo, de extrema-direita. É um setor muito ideologizado e radical. Isso provocou os acontecimentos de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes de Brasília, quando ocorreu aquele verdadeiro ataque à república e à democracia, repudiado pela maioria da sociedade.
Com a derrota eleitoral, o bolsonarismo passará por um momento de vazante e perderá força, mas as ideias e valores conservadores e o aparato de comunicação associado são muito fortes e têm grande impacto na sociedade. Por isso é necessário que as forças democráticas encabecem uma intensa luta política, social e econômica para derrotar o bolsonarismo e seu projeto conservador e retrógrado no próximo período.
Movimentos populares, protagonistas
P: Do outro lado do cenário nacional, na base, os movimentos sociais já estão respirando novos ares políticos a partir de 1º de janeiro de 2023?
JPR: Para os movimentos populares e para a sociedade brasileira, o clima mudou com a assunção de Lula. A sensação é de que “o pior já passou”, mas é preciso manter a mobilização e a participação para obter melhorias e conquistas. Lula construiu uma boa equipe de governo. Abriu espaços para importantes lideranças da sociedade e defende uma agenda progressista nas áreas econômica e social. Além disso, protagonizou diversos eventos simbólicos, como a visita em 21 de janeiro – uma das primeiras viagens de Lula ao interior do país – ao povo Yanomami, em Roraima, que havia sido praticamente condenado ao genocídio pelas políticas de Bolsonaro. Constituiu um claro sinal de que para o novo governo a prioridade será, sem dúvida, a atenção dos setores mais excluídos pelas políticas ultraliberais do governo anterior.
Q: No g anterior Direções do Partido dos Trabalhadores (Lula e Dilma Rousseff), os movimentos sociais fizeram críticas fundamentais à “mornidão” da gestão em questões delicadas. Por exemplo, o MST fez duras críticas ao fato de a reforma agrária não ter avançado. Os movimentos indígenas e ambientalistas criticaram o PT pelas poucas conquistas em suas respectivas áreas. Existe um novo tipo de relação entre o atual governo Lula e os movimentos sociais, ou continua a preocupação de que os erros do passado se repitam?
JPR: Amadurecemos muito, tanto os movimentos populares, os partidos políticos quanto o próprio Lula. A presidência de Lula de 2003 a 2010 foi a primeira experiência de um governo progressista com um presidente oriundo da classe trabalhadora. Foi um tempo de aprendizado. Desde então, o país passou pelo golpe de 2016 (destituição parlamentar de Dilma Rousseff), pela perseguição e prisão de Lula, e pelo surgimento de uma nova expressão da extrema direita com a eleição de Bolsonaro em 2018. Observo que hoje há é uma compreensão muito maior dos desafios políticos. Do ponto de vista dos movimentos populares, fica claro que é preciso conquistar a sociedade para que ela avance em um programa de mudança social; lutar para que nossos interesses sejam levados em consideração e defender o governo contra as pressões da direita. Cabe ao governo dialogar com os movimentos, levar adiante as agendas definidas como prioritárias e estimular
ar maior participação política da sociedade para a construção de uma nova forma de governança.
P: Quais são as principais reivindicações do MST para esta nova etapa? A reforma agrária ainda é relevante?
JPR: O MST está alinhado com a agenda do presidente Lula de colocar no centro o combate à fome e à pobreza. Acabar com a fome requer atendimento aos mais vulneráveis e uma política de produção de alimentos de qualidade, além de propostas de redistribuição social de renda. O primeiro objetivo que o MST promove e que faz parte de um programa emergencial é o assentamento de famílias acampadas. Existem mais de 100.000 famílias vivendo em acampamentos, muitas das quais estão em barracas há 10 anos, cujo único teto é de plástico preto grosso. O governo tem que abrir um cadastro e elaborar um calendário para liquidá-los. Cerca de 30 mil famílias estão em áreas de pré-assentamento que não foram efetivadas porque o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) não concluiu o processo de cadastramento legal. A segunda pauta refere-se à agricultura familiar e às famílias assentadas, que garantiram
produção de alimentos básicos ainda durante o governo Bolsonaro, apesar de ter desmantelado totalmente a gestão pública. É preciso retomar as políticas de produção, crédito, cooperação, industrialização e comercialização para favorecer os assentamentos.
P: Avançou-se para uma real unidade dos atores e movimentos sociais brasileiros, ou cada um está agindo por conta própria no estágio atual?
JPR: Em torno da oposição a Bolsonaro e da candidatura e eleição de Lula, desenvolveu-se a maior unidade política dos movimentos populares desde os anos 1990. Essa unidade política é real e avançou do ponto de vista programático e tático. Em março realizamos uma grande plenária com todos os movimentos populares e forças progressistas, na qual discutimos as propostas comuns e elaboramos um calendário de ações conjuntas para o primeiro semestre do ano corrente.
Desafios latino-americanos e globais
P: A América Latina vive uma fase complexa e, ao mesmo tempo, desafiadora, com a presença de vários governos progressistas. Quais são os principais desafios atuais?
JPR: A América Latina vive uma nova etapa com a eleição de governos progressistas no Brasil, México, Argentina, Chile, Bolívia e principalmente na Colômbia, além da resistência histórica de Cuba e Venezuela.
Isso mostra que os povos do continente rejeitam as novas expressões políticas do programa neoliberal e do projeto imperialista dos EUA. No entanto, é preciso avançar na organização popular e na luta ideológica em torno de um programa anti-imperialista e antineoliberal para apoiar e fazer avançar essas experiências progressistas. Com o fortalecimento da extrema direita e a crise das democracias liberais, que se expressa em golpes, não basta vencer as eleições. São necessários povos organizados, politizados e mobilizados para promover governos progressistas e lutar contra a extrema direita e as forças do neoliberalismo.
P: Tudo isso em um mundo que sofre as consequências de uma terrível guerra na própria Europa…
JPR: A crise do capitalismo que se arrasta desde 2007/2008 tem implicações políticas, económicas, sociais e geopolíticas íticas. As contradições no cenário internacional se agravaram com a crise mundial, o avanço da presença econômica da China, a reação dos Estados Unidos e da Europa e o fortalecimento da extrema direita em diversos países do planeta. A expansão da OTAN para o Oriente, que provocou a resposta da Rússia com a guerra na Ucrânia. É necessário encontrar um caminho político para a paz. Depende de sinais que devem vir de todos os lados e que devem incluir a retirada da OTAN do cenário militar europeu e o fim da guerra na Ucrânia.
rmh/sf/ml