Sob o protocolo imposto pela Covid-19, seu rosto mascarado e sua voz profunda nos identifica em um quarto de hotel em Brasília, acompanhado por líderes com diferentes posições no Partido dos Trabalhadores (PT).
Depois de nos bater suavemente no peito com sua mão esquerda de quatro dedos pela a perda de seu dedo mindinho em um acidente de trabalho, ele sussurra quase aos nossos ouvidos que não esquecerá a Prensa Latina. Aos 75 anos, Lula é um homem que se parece com um parente próximo e muitos no Brasil o veem como o presidente que quase todos gostariam de ter porque é tradicional em seus valores, mas muito firme em suas convicções.
Durante sua visita de cinco dias à Cidade do México, ele mal pôde descansar. Ele conseguiu restabelecer os laços com líderes e forças de diferentes cores políticas.
‘Foi muito importante para mim pessoalmente. Penso que é muito significativo para o PT restabelecer conversas com as forças políticas deste país’, disse o ex-líder trabalhista em um vídeo após o fim de sua estada na capital brasileira.
Durante a troca de opiniões, ele abordou a vacina urgente anti-Covid-19 para todos, ‘a ajuda de emergência de 600 reais (108 dólares por mês), o crédito de emergência para salvar pequenas e médias empresas, e uma política de investimento para gerar empregos’.
Ele também denunciou a desastrosa política internacional do governo de Jair Bolsonaro. ‘Ninguém convoca o Brasil para uma reunião. Todos estão preocupados com o desgoverno, o desmatamento, o desrespeito a Covid-19, as vacinas e o cuidado com as pessoas’, observou ele.
Lula respondeu exclusivamente algumas perguntas para a Prensa Latina.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) está atualmente investigando as ações, omissões e negligências da administração federal em seu tratamento da Covid-19. Em apenas duas semanas, a indolência de Bolsonaro diante da pandemia foi confirmada e acalmou suas bases aliadas e o próprio ex-militar, que tentou desviar a atenção do trabalho daquele conselho.
Ameaças de convocação das Forças Armadas e ataques ao relator Renan Calheiros foram algumas das estratégias adotadas pelo Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo) e seus aliados no Congresso.
Até o senador Flávio Bolsonaro, filho do chefe de Estado, foi à comissão para ajudar o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten e chamou Calheiros de vagabundo.
‘A CPI e outras investigações confirmarão o que o mundo inteiro viu: a negligência, a irresponsabilidade, a mentira, o absurdo das ações de Bolsonaro e seu governo na crise sanitária mais grave do mundo em 100 anos’, afirmou Lula à Prensa Latina ao se referir às notícias que prevalecem atualmente na mídia.
Ele disse que a Covid-19 já ceifou centenas de milhares de vidas em todo o mundo, ‘só no Brasil, mais de 435.000 pessoas’. Denunciou que ‘Bolsonaro, ao invés de coordenar os governos locais, sabotou repetidamente as medidas de combate ao vírus, indicou falsos medicamentos à população, desmantelou a equipe técnica do Ministério da Saúde. Algo desumano.
Segundo o ex-líder sindical, os pesquisadores mostraram que pelo menos 200 mil pessoas morreram por causa dos erros do governo na pandemia.
‘Temos mais população e fronteiras terrestres, mas se tivéssemos números semelhantes aos de Cuba (casos de mortes e contágios), 400.000 vidas brasileiras teriam sido salvas’, disse o ex-governante.
Reconheceu que todos perdem amigos e familiares. ‘Não há paralelo no mundo com relação ao comportamento de Bolsonaro, que nem sequer tentou proteger os brasileiros do vírus’, observou ele.
FELICITAÇÕES CUBA
Com relação às ações e comportamentos, Lula admitiu que ‘os médicos cubanos poderiam ajudar a população no Brasil durante a crise da Covid-19’. Eles ajudaram muito os brasileiros, especialmente aqueles das comunidades mais remotas e dos bairros mais pobres.
Os profissionais cubanos ‘são muito necessários e o governo que os rejeitou (o programa Mais Médicos) o fez porque não se preocupa com a vida da população brasileira’, disse ele. Aludiu aos candidatos a vacinas desenvolvidos pela ilha caribenha contra o patógeno e instou o gigante sul-americano a analisar e ir atrás de todas as possibilidades de vacinas eficientes contra a Covid-19 e assim deixar para trás esta pandemia o mais rápido possível.
‘Parabéns ao povo cubano e aos cientistas por desenvolverem sua própria vacina para o mundo’, disse ele.
A AJUDA
As populações mais vulneráveis socialmente do país enfrentam uma situação crítica diante da pandemia. Nas periferias urbanas, favelas, terras indígenas, quilombolas (afrodescendentes) e comunidades rurais, os brasileiros precisam de ajuda humanitária urgente para ter acesso às condições mínimas e se proteger da doença: alimentação, materiais de higiene, abrigo.
A ajuda de emergência é uma vitória, mas não chega a todos aqueles que precisam dela, sujeita as pessoas a dificuldades burocráticas e está longe de resolver o problema.
Quando o governo decidiu cancelar a assistência e depois reiniciá-la com menos recursos (de 600 reais para 150 reais), forçou as famílias a saírem às ruas em busca de sustento e, como resultado, o número de mortes e infecções causadas pela Covid-19 disparou.
Para Lula, o Brasil teve meses para se preparar, primeiro quando o vírus apareceu na China e depois na Itália. Poderia ter fechado as fronteiras mais rapidamente e realizado imediatamente mais testes para rastrear e isolar as fontes de infecção.
Bolsonaro impediu estas ações, o ex-presidente disse a Prensa Latina e assegurou que a ajuda de emergência quando foi aprovada por 600 reais foi devido à pressão dos partidos de oposição, principalmente do PT.
O alívio ‘foi essencial para evitar a propagação do vírus e para ajudar aqueles que podiam ficar em casa, e para proteger as empresas, especialmente as pequenas’, disse ele.
Observou que o ex-oficial militar ‘deixou (a ajuda) fechar e agora propõe uma quantidade menor, para menos pessoas’. Para aqueles que tiveram que trabalhar, o governo e as empresas deveriam fornecer equipamentos de proteção e condições de segurança, enquanto nós deveríamos correr o mais rápido possível e vacinar toda a população? Nada disso foi feito.
É cada vez mais claro, salientou Lula: ‘Bolsonaro queria que a população brasileira estivesse exposta ao vírus, independentemente do número de mortes. Nem que isso isolasse o Brasil no mundo, com a possibilidade de novas variantes do vírus, como acabou acontecendo em Manaus’, disse ele.
INVALIDEZ DE CONDENAÇÕES E ELEIÇÕES
Em abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) revalidou decisão que anulou as condenações contra o ex-presidente no contexto da operação desarticulada Lava Jato. Com a confirmação, Lula recuperou seus direitos políticos e poderá participar das eleições de 2022.
Dos 11 juízes que compõem o tribunal superior, oito concordaram em manter a nulidade das sentenças e três foram contra.
Pelo entendimento do tribunal pleno, o ex-juiz Sérgio Moro, declarado suspeito de parcialidade pelo STF, não poderia ter julgado os casos contra Lula, que cumpriu 580 dias em prisão política por supostos atos de corrupção.
A decisão da Suprema Corte terminou com a supressão de todas as condenações contra o ex-presidente, o que significa que ele voltou definitivamente para a arena político-eleitoral.
Apesar dessa possibilidade, os analistas dizem que a esquerda não deve cometer os erros de 2018, como a falta de unidade, que pavimentou o triunfo de Bolsonaro nas urnas.
‘Essa eleição foi atípica porque foi criada uma farsa para impedi-lo de ser um candidato e fazer campanha pelo país. Ele até deu entrevistas’, disse Lula à Prensa Latina.
Detalhou que ‘ele foi condenado por um juiz tendencioso (Moro), que promoveu perseguição política contra a esquerda. Como eu sei e o próprio Bolsonaro sabe, se ele tivesse competido em 2018 ele não ganharia’.
Além disso, alguns grupos de mídia criaram durante anos um clima de ódio e mentira, o que permitiu ‘a vitória da extrema direita e a eleição de um troglodita’. Não foi uma eleição normal’, disse ele.
FIDEL ME ENCORAJOU A CONTINUAR NA POLÍTICA
Pela primeira vez, Lula revelou que, quando perdeu as eleições para o governo de São Paulo em 1982 e pensava em deixar a política, ‘visitei Cuba e Fidel Castro me disse que não havia sido derrotado, pois nunca antes havia um trabalhador recebeu tantos votos em uma eleição. Isso me encorajou a continuar na política. ‘
Ele disse ao Prensa Latina que tinha ‘muitos amigos entre o povo cubano e eu sempre recebi carinho, respeito e solidariedade de Cuba por mim e pelo povo brasileiro’.
Durante a votação na Assembleia Geral da ONU em novembro de 2019, Cuba recebeu o apoio esmagador da comunidade internacional, quando 187 Estados-membros se pronunciaram contra o bloqueio econômico, comercial e financeiro.
Apenas dois países se abstiveram: Colômbia e Ucrânia; enquanto os Estados Unidos, Israel e Brasil votaram contra o levantamento do cerco e ficaram isolados diante da demanda da maioria da comunidade internacional.
Comentadores advertiram que esta mudança do Executivo brasileiro em favor do cerco contra Havana quebrou uma tradição diplomática de 1992 e se deveu mais à tentativa de Bolsonaro de fortalecer o alinhamento ideológico com o então Presidente dos EUA, Donald Trump.
A este respeito, o fundador do PT condenou o apoio absurdo do ex-capitão do Exército ao bloqueio, apoio ‘que foi feito dentro de uma política de submissão ao Trump’.
‘E é importante entender que o governo de Bolsonaro é um acidente, que passará, como Trump fez nos Estados Unidos’. O Brasil e o mundo merecem algo muito melhor do que Bolsonaro’, frisou por fim.
arb/ocs/bm
(*) Correspondente da Prensa Latina no Brasil